azul caixão
Julia Bicalho Mendes
maria sabina
méxico (1894-1985)
I
sou mulher que olha para dentro
sou mulher luz do dia
sou mulher lua
sou mulher estrela da manhã
sou mulher estrela deus
sou a mulher constelação guarache
sou a mulher constelação cajado
porque podemos subir ao céu
porque sou a mulher pura
sou a mulher de bem
porque posso entrar e sair do reino da morte
*
sou uma mulher que chora
sou uma mulher que cospe
sou uma mulher que já não dá leite
sou uma mulher que fala
sou uma mulher que grita
sou uma mulher que dá a vida
sou uma mulher que já não pare
sou uma mulher que flutua sobre as águas
sou uma mulher que voa pelos ares
*
sou uma mulher que vê na escuridão
sou uma mulher que que apalpa a gota de orvalho repousada sobre a erva
sou uma mulher feita de pó e vinho aguado
sou uma mulher que sonha enquanto é atropelada pelo homem
sou uma mulher que sempre volta a ser atropelada
sou uma mulher que não tem forças para levantar uma agulha
sou uma mulher condenada a morte
sou uma mulher de inclinações simples
sou uma mulher que cria víboras e pardais no decote
sou uma mulher que cria salamandras e samambaias no sovaco
sou uma mulher que cria musgo no peito e no ventre
sou uma mulher a qual ninguém jamais beijou com entusiasmo
sou uma mulher que esconde pistolas e rifles nas rugas da nuca
*
sou mulher que faz trovoar
sou mulher que faz sonhar
sou mulher araría, mulher beija-flor
sou uma mulher águia, mulher águia dona
sou mulher que gira porque sou mulher redemoinho
sou mulher de um lugar encantado, sagrado,
porque sou mulher aerolito.
Tradução: Julia Bicalho Mendes
I
soy mujer que mira hacia adentro
soy mujer luz del día
soy mujer luna
soy mujer estrella de la mañana
soy mujer estrella dios
soy la mujer constelación guarache
soy la mujer constelación bastón
porque podemos subir al cielo
porque soy la mujer pura
soy la mujer del bien
porque puedo entrar y salir del reino de la muerte
*
soy una mujer que llora
soy una mujer que escupe
soy una mujer que ya no da leche
soy una mujer que habla
soy una mujer que grita
soy una mujer que da la vida
soy una mujer que ya no pare
soy una mujer que flota sobre las aguas
soy una mujer que vuela por los aires
*
soy una mujer que ve en la tiniebla
soy una mujer que palpa la gota de rocio posada sobre la yerba
soy una mujer hecha de polvo y vino aguado
soy una mujer que sueña mientras la atropella el hombre
soy una mujer que siempre vuelve a ser atropellada
soy una mujer que no tiene fuerza para levantar una aguja
soy una mujer condenada a muerte
soy una mujer de inclinaciones sencillas
soy una mujer que cría víboras y gorriones en el escote
soy una mujer que cría salamandras y helechos en el sobaco
soy una mujer que cría musgo en el pecho y en el vientre
soy una mujer a la que nadie besó jamás con entusiasmo
soy una mujer que esconde pistolas y rifles en las arrugas de la nuca
*
soy mujer que hace tronar
soy mujer que hace soñar
soy mujer araría, mujer chuparrosa
soy mujer águila, mujer águila dueña
soy mujer que gira porque soy mujer remolino
soy mujer de un lugar encantado, sagrado
porque soy mujer aerolito.
(Versão original)
II
sou um cervo de sete pontas,
sou uma crescente: através de uma planície,
sou um vento: em um lago profundo,
sou uma lágrima: que o sol deixa cair,
sou um gavião: sobre o penhasco,
sou um espinho: debaixo da unha,
sou um prodígio: entre as flores,
sou um mago: quem senão eu
inflama com fumaça a cabeça fria?
sou uma lança: que anseia por sangue,
sou um salmão: eu um tanque,
sou um chamariz: do paraíso,
sou uma colina: por onde andam os poetas,
sou um javali: rubro e impiedoso,
sou uma britadeira: que ameaça a ruína,
sou uma maré: que arrasta a morte,
eu sou uma criança: quem senão eu
espreita o arco não esculpido do círculo de pedras?
sou a matriz: de todos os bosques,
sou a fogueira: de todas as colinas,
sou a rainha: de todas as colmeias,
sou o escudo: de todas as cabeças,
sou a tumba: de todas as esperanças.
Tradução: Julia Bicalho Mendes
II
soy un ciervo: de siete púas,
soy una creciente: a través de un llano,
soy un viento: en un lago profundo,
soy una lágrima: que el Sol deja caer,
soy un gavilán: sobre el acantilado,
soy una espina: bajo la uña,
soy un prodigio: entre las flores,
soy un mago: ¿quién sino yo
inflama la cabeza fría con humo?
soy una lanza: que anhela la sangre,
soy un salmón: en un estanque,
soy un señuelo: del paraíso,
soy una colina: por donde andan los poetas,
soy un jabalí: despiadado y rojo,
soy un quebrantador: que amenaza la ruina,
soy una marea: que arrastra la muerte,
soy un infante: ¿quién sino yo
atisba desde el arco no labrado del dolmen?
soy la matriz: de todos los bosques,
soy la fogata: de todas las colinas,
soy la reina: de todas las colmenas,
soy el escudo: de todas las cabezas,
soy la tumba: de todas las esperanzas.
(Versão original)
Maria Sabina foi uma poeta, curandeira, xamã do povo indígena mazateca que viveu na Sierra Mazateca, em Oaxaca, no sul do México. Suas poesias eram cantadas em um transe xamânico em que, como ela contou, as "crianças santas" falavam através dela.